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Impressões de leitura de Isaltina Campo Belo

Rafaela Jemmene

Aqui, proponho mostrar algumas das impressões de leitura que tive ao ter contato com o conto Isaltina Campo Belo, o qual faz parte do livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres, escrito por Conceição Evaristo. E estas impressões foram tecidas a partir da leitura desse texto, bem como das conversas com a Amara Moira e as integrantes da Imersão: Outras Críticas Literárias, que faz parte do Programa: Mulher Artista Resiste. 

 

Para iniciar a conversa, devo dizer que o título do livro me chamou a atenção, estão juntas as palavras insubmissas e lágrimas. Ainda que a palavra lágrimas possa representar alegria, aqui pensei em dor. Pelo título pode-se pensar que, apesar do sofrimento, temos a insubmissão como forma de ser e estar no mundo, como uma atitude de coragem diante das dores, uma postura de ação. 

 

 

Ainda que queiram moldar os corpos e mentes das mulheres, sobretudo das mulheres negras, há uma espécie de luta, de resistência. De mulheres que são obrigadas a serem fortes, e que lutam e sobrevivem a essas lágrimas. Não quero aqui romantizar essa situação, pois ela não deveria ocorrer, mas como ela ocorre, diante dela existe a resistência, a teimosia de manter-se viva e inteira. E Campo Belo manteve-se viva e inteira, suas  atitudes tomadas perante a vida mostram isso. Quando está em seu momento de fala, durante a conversa que teve com a narradora da sua história, Campo Belo traz à tona fatos de sua vida que até então não haviam sido revelados a ninguém.

 

 

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Campo Belo, uma mulher que não aparenta a sua idade, é uma mulher que apresenta uma juventude que, de certo, ela já não tem mais, pois saiu de casa com 22 anos e tem uma filha de 35 anos, chamada Walquíria, para a qual parece contar sua história. A foto de Walquíria ficou o tempo todo na mesa ou nas mãos das mulheres que conversavam.  

 

A inexatidão acompanha Isaltina em sua vida. A menina com o menino dentro. Seus desejos por meninas, coisa que ela não compreendia. A mãe de uma filha de um pai incerto. Os fatos, as situações que a levaram a caminhar pelo mundo, indo e voltando. Esse caminhar muitas vezes me pareceu um jeito de tentar pertencer, ela não sentia-se parte, sentia-se deslocada, fora de lugar.

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Isaltina lembra-se das histórias de seus antepassados, da luta para conseguir a liberdade e como essas narrativas familiares davam dignidade a sua família.

O andar de Isaltina pelo mundo começou sem ela entender quem era ou poderia ser. Seu desejo por pessoas do mesmo sexo a confundiam. Isaltina não entendia como meninas poderiam desejar meninas. E criou dentro de si um menino fantasia. O menino de Isaltina. Este menino me confundiu. Eu não entendia se ela mesma gostaria de ser um menino ou se ela se percebia menino por desejar meninas, por não entender que meninas também podiam desejar meninas. Enfim, esta dúvida me perseguiu no decorrer do texto.

Não compreendia o que acontecia consigo. E assim cresceram Isaltina, seu irmão, sua irmã e seu menino. Teve uma criação na qual seu irmão gozava da liberdade de ser menino. A ele era liberado subir em árvores. Porém, sua mãe não gostava quando ela e sua irmã faziam o mesmo. A elas, por certo, a vida reservava um maior rigor no comportamento, e desde a infância precisavam entender que o corpo do homem poderia experimentar seus desejos e seus sentidos de uma maneira mais liberta. E o corpo da menina deveria ser mais moldado, mais repreendido, mais submisso, menos ativo e mais retraído. 

 

E assim foi crescendo Isaltina. Um dia, o sangue de sua irmã verteu e, logo após, o de Isaltina. Agora haviam duas mocinhas na casa, Isaltina e sua irmã. Duas mocinhas, como dizia sua mãe. Ser mocinha. O que se espera de uma mocinha? Subir em árvores é que não era…

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Como sua mãe não a percebia menino? Como ela poderia sentir-se atraída por meninas? Saiu de casa. Ela esperava que assim poderia viver sozinha, visto que, seu irmão e irmã já tinham suas vidas afetivas ativas. E saiu Isaltina de casa aos 22 anos.

A jovem Isaltina encontrou um homem. Um homem no qual confiou, para o qual abriu seu coração. Esse homem achava que ela poderia mudar sua orientação sexual, que ela não desejava homens por ter algum trauma e que, com ele, Isaltina aprenderia a ser mulher. Mas, afinal, o que é ser mulher? Caberia a um homem dizer isso a Isaltina? A ensinar-lhe? Como assim as mulheres negras deveriam ter mais “fogo”? E assim, o homem que se dizia amigo de Isaltina apareceu. Usando a violência gerada pela falta de amor, desrespeito em aceitar que um ser humano é livre para desejar a quem quiser. Ele achava que poderia curar o desejo da jovem Isaltina, como se ela fosse doente, por desejar mulheres.

A jovem Isaltina confiou no homem que dizia ser fascinado pela mulher negra, que ela deveria ter fogo, pois era o esperado. Como ela o poderia recusá-lo sexualmente? Ele decerto não poderia aceitar isso. 

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O homem, sem escrúpulo e machista, a fez vítima de uma das mais atrozes violências a qual um ser humano pode ser exposto, um estupro. Um estupro coletivo no qual cinco homens queriam ensiná-la a ser mulher, um ato bizarro, violento, execrável, sem razão, sem amor; só ódio, desamor e crueldade. Não ver a outra como igual, ver a mulher como ser a serviço do homem, a qual deve estar pronta para saciar o desejo masculino. 
 

Da violência veio a gravidez. Campo Belo voltou e saiu da casa dos pais, agora com sua filha. Em suas idas e vindas, nas fugas do caminho, Campo Belo procurava seu lugar no mundo, sentir-se parte. Caminhava, caminhava… 

E em seu caminho Campo Belo encontrou Miríades.

Campo Belo, nos olhos de Miríades, entendeu que era uma mulher que desejava mulheres, sim era possível. 

​Ela só não teve em seu percurso quem a ouvisse, a visse e a aceitasse como ela era, uma mulher que gostava e deseja mulheres. E assim, Isaltina se fez mulher, no braços, nos olhos e no amor de Miríades.

 

Viveram as três, Campo Belo, Walquíria e Miríades, formaram uma família. A família de Campo Belo, forjada na violência, mas amparada no amor. A pessoa que Campo Belo tornou-se foi insubmissa, mesmo que seu corpo sofresse a dor e a humilhação. Campo Belo construiu seu caminho, ainda que não entendesse o porque de ser sentir-se tão diferente no mundo.

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Agora, pensando em Campo Belo e sua trajetória, eu me pergunto, por que tanta gente neste mundo procura estabelecer padrões de comportamento, de beleza, de sexualidade entre tantos outros? Por qual razão temos que nos moldar para tentar ser quem não somos ou queremos ser? Isaltina tornou-se Campo Belo, por meio de muita falta de compreensão, de muita violência e dor. Mas, ela foi insubmissa ao destino que lhe foi desenhado, e assim conheceu, ao seu modo, a vida, a dor e o amor.

 

Fragmentos de texto de:

Conceição, Evaristo. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.

Insubmissão: https://www.dicio.com.br/insubmisso/  –  Acesso: 15/03/2022.

Miríade: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mir%C3%ADade – Acesso: 15/03/2022.

Rafaela Jemmene Artista visual, Doutora e Mestre em Artes Visuais pela Unicamp. Desenvolveu investigações artísticas em um intercâmbio na Universidad Complutense de Madrid  (2015/2016). Graduada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2008). Desde 2005 participa de exposições em salões de arte, galerias e espaços culturais, no Brasil e no exterior. Uma das idealizadoras e organizadoras da plataforma de arte impressa contemporânea sobrelivros (2010 – 2017).

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