A mulher sem selo
Laís Kalena
Isaltina Campo Belo descobriu logo cedo que era mulher e que não queria sê-lo. Havia uma distância muito grande entre o que sentia sobre si e o que os outros esperavam que fosse. Isaltina descobriu logo cedo que não queria ser uma mulher como lhe confiavam. Restava, portanto, ser algo mais. Talvez se fosse um homem, tudo seria diferente. E disso Isaltina tinha convicção, porque sentia. Seu sentimento desafiava as formas dentro das quais uma mulher poderia existir.
“Isaltina Campo Belo” é um dos treze contos publicados na obra Insubmissas Lágrimas de Mulheres, por Conceição Evaristo. Na obra, a autora relata vivências de mulheres, abordando os eventos e as relações que de algum modo marcaram suas vidas. A perspectiva adotada é uma posição de enfrentamento às narrativas que inventam modos de ver, ser e pensar a mulher a partir da expectativa masculina. A leitura do sexto conto nos faz refletir sobre a multiplicidade de entendimentos que podem ser elaborados acerca do que é a mulheridade quando ela é pensada a partir de quem a experimenta. O texto reforça a ideia de que a construção das identidades é uma experiência aberta.
A discussão sobre o poder da conexão entre mulheres é encontrada desde a primeira página de “Isaltina Campo Belo” quando a narradora relata a experiência de encontrar a protagonista em sua casa. O sorriso, o abraço e a presença criam o espaço de acolhimento em que Campo Belo compartilha suas histórias. A relação de identificação que rapidamente se constrói entre ambas faz com que Campo Belo confie dividir pela primeira vez detalhes de um dos momentos mais dolorosos de sua vida. A abordagem da autora vale-se da fala e da escuta como atos de libertação. É através da fala que a protagonista livra-se do efeito de dominação que o seu passado exerce sobre seu futuro enquanto a personagem move-se rumo à afirmação de sua identidade, na medida em que a escuta, concede a oportunidade de se libertar.
Conceição Evaristo conta suas histórias com afeto, envolvendo-se dentro e fora de si. A eficácia de sua obra parece depender de três personagens: de quem vive, de quem narra e de quem lê. Quem vive, sente. Quem narra, dá a forma ao sentimento, na medida em que dele tem uma experiência. Quem lê, experimenta a emoção e a transforma. Ler “Isaltina Campo Belo” é um movimento. Campo Belo ensina que “ser-mulher” é verbo no infinit(iv)o: ser mulher é desfazer o rigor dos modos e revoltar a ordem do tempo.
LAÍS KALENA Aracaju/SE @laiskalena
Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista Capes. Licenciada em História pela Universidade Federal de Sergipe.