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Transgressões na escrita de Conceição Evaristo

Amara Moira

"Isaltina Campo Belo", conto de Conceição Evaristo presente no livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2016), é uma dessas obras que, aparentando a princípio simplicidade, vão se revelando mais e mais complexas à medida que nos damos conta das suas diversas camadas de sentido. Cheguei a ela quando estava estudando representações da violência sexual na literatura brasileira, mas rapidamente percebi que ali, junto a esse tema, discutiam-se também outras tantas questões que interessavam diretamente às minhas pesquisas, como, por exemplo, as relativas a gênero, sexualidade e questões raciais.

    A impressão inicial, no entanto, foi negativa. Havia lido apenas esse conto, não o livro todo, então faltavam-me alguns elementos para entender melhor a proposta em que essa narrativa se encaixava. Negativa por quê? Bom, porque, à primeira vista, me pareceu problemática, potencialmente transfóbica, a maneira como a protagonista tentava explicar o motivo de não se ver mais como homem, o que a levou, nas palavras dela, a "[se] entend[er] mulher", a "[se] aceitar feliz e em paz co[ns]igo mesma" (p.67).

    O livro é uma compilação de narrativas feita por uma figura que aparece ao começo de cada narrativa e, depois, cede espaço para a protagonista contar, em primeira pessoa, a própria história. Cada relato recebe o nome de uma dessas mulheres, mas nada se diz sobre a identidade da compiladora, exceto que ela, assim como as demais, é uma mulher negra. Seria ela a autora, Conceição Evaristo? É possível imaginar que sim e, inclusive, pensar os relatos como simples entrevistas transcritas, um trabalho documental, portanto, e não ficcional, mas isso seria um sinal evidente de que estamos caindo nas armadilhas da escritora.

Os relatos, na superfície, são simples e a linguagem é bastante acessível, mas por trás dessa aparente facilidade se esconde uma narrativa muitíssimo sofisticada. O incômodo inicial que senti, hoje o percebo, teve a ver com o fato de eu não ter, a princípio, atentado para essas várias camadas de sentido.

"Campo Belo, como gostava de ser chamada" (p.55), começa sua história dizendo que, apesar da infância feliz, uma dúvida a perseguiu por todo esse período: "Eu me sentia menino e me angustiava com o fato de ninguém perceber" (p.57). Ninguém percebia o engano, nem o pai, sempre trabalhando demais, nem os irmãos, distraídos que eram, nem o médico que tratou de sua apendicite, nem, sobretudo, sua mãe, enfermeira de profissão, a única pessoa a quem a criança não perdoava o equívoco.

No entanto (e os meus incômodos começam exatamente aqui), apesar de se dizer tão enfática e reiteradamente menino, a compiladora a havia apresentado, pouco antes, como mulher ("seu rosto negro, sem qualquer vestígio de rugas, brincava de ser o de uma mulher, que no máximo teria os quarenta anos" [p.56]) e a protagonista, desde o momento em que toma a palavra, se refere a si mesma apenas pelo feminino.

Nenhum motivo é apresentado para Campo Belo discordar do gênero que lhe atribuíram ao nascer, há apenas a certeza: "Eu era um menino" (p.58). E a insistência em dizer-se menino e, ao mesmo tempo, em tratar-se no feminino acaba gerando construções inesperadas como a seguinte: "Ainda novinha, talvez antes mesmo dos meus cinco anos, eu já descobrira o menino que eu trazia em mim" (p.58). A chegada da menstruação e a entrada na adolescência promovem, porém, uma guinada súbita na maneira como ela pensa a própria identidade: "Eu via o meu corpo menina e, muitas vezes, gostava de me contemplar. O que me confundia era o caminho diferente que os meus desejos de beijos e afagos tendiam" (62).

Falo em guinada porque, se antes, a referência era simplesmente a um "entender-se menino", nesse ponto Campo Belo começa a apontar que seu "corpo menina" não era um problema e, sim, a direção para onde rumavam os seus desejos. Uma questão não mais de identidade, portanto, mas de sexualidade. Mas quem dera as coisas pudessem ser assim tão simples, não é mesmo?

Essa nova percepção faz com que a protagonista se feche em seu casulo, ela chegando aos vinte e dois anos sem ter vivido nenhum tipo de envolvimento amoroso ou sexual. Somente na faculdade permitiu-se, pela primeira vez, entrar num relacionamento. Relacionamento com um colega que conquistou a sua confiança, pautado mais por companheirismo do que por desejo ou paixão, justo com quem ela decidiu abrir-se a respeito de como se entendia: "Falei do menino que eu carregava em mim desde sempre" (p.63).

Percebam que ela não falou do "caminho diferente que os [s]eus desejos de beijos e afagos tendiam", como era de se esperar, mas sim "do menino que [ela] carregava em [si] desde sempre". No entanto, apesar de ela ter voltado a mencionar a forma como se via, ou seja, a sua autocompreensão de gênero, o rapaz a interpretou de uma maneira um tanto diversa (p.63-4):

 

Ele, sorrindo, dizia não acreditar e apostava que a razão de tudo deveria ser algum medo que eu trazia escondido no insconsciente. Afirmava que eu deveria gostar muito e muito de homem, apenas não sabia. Se ficasse com ele, qualquer dúvida que eu pudesse ter sobre o sexo entre um homem e uma mulher acabaria. Ele iria me ensinar, me despertar, me fazer mulher.

 

O "dizer-se menino" de Campo Belo foi entendido pelo namorado como um "gostar de meninas", num nítido atravessamento de sexualidade e gênero. O atravessamento já estava insinuado nas falas da protagonista, mas aqui ele assume um caráter explícito quando "transar com homem" é relacionado diretamente com um "fazer-se mulher". Sexo fazendo gênero, gênero fazendo sexo. Na sequência, o rapaz ainda dá um jeito de aproximar esses dois fatores do elemento raça: "E afirmava, com veemência, que tinha certeza de meu fogo, pois afinal, eu era uma mulher negra, uma mulher negra..." (p.64).

Racismo, machismo e LGBTfobia de uma tacada só. O que Campo Belo não esperava é que, além de tudo isso, a ideia de "sexo" que o rapaz possuía não pressupunha necessariamente consentimento. Daí ter ele, um dia, convidado para uma festa alguns amigos e a protagonista, festa onde ela foi dopada e violentada por cinco homens, que diziam estar "ensinado[-a] a ser mulher" (p.64). Esse relato, feito trinta e cinco anos depois da violência, é a primeira vez que ela consegue "falar em voz alta o que [lhe] aconteceu" (p.65).

Os sentimentos de vergonha e impotência levaram Campo Belo a não mais voltar ao trabalho, e era tal o seu estado de alheamento que ela só se deu conta da gravidez aos sete meses da gestação, nunca indo atrás de descobrir quem seria o progenitor ("Dentre cinco homens, de quem seria a paternidade construída sob o signo da violência?" [p.65]). Voltou a morar com a família após o nascimento da filha Walquíria, que cresceu sem pai ("Pai sempre foi um nome impronunciável para ela" [p.65]) e sem ninguém insistir na identidade do tal "namorado que [Campo Belo] havia arrumado na cidade" (p.65).

A violência fez com que a protagonista se fechasse ainda mais, mantendo-se desperto, dentro dela, apenas "o amor por [sua] filha" (p.66). E foi justo por meio da filha que um novo caminho se apresentou: na primeira reunião da escolinha, Campo Belo "apreend[e] não só as orientações que a professora transmitia às mães das crianças, mas também o olhar insistente da moça em [sua] direção", momento em que "o menino que habitava [nela] reapareceu crescido" (p.66). Lembranças de sofrimentos vividos por seu "corpo-mulher" vêm à tona e, de repente, uma constatação:

 

Não havia um menino em mim, não havia nenhum homem dentro de mim. Eu, até então, encarava o estupro como um castigo merecido, por não me sentir seduzida por homens. Naquele momento, sob o olhar daquela moça, me dei permissão pela primeira vez. Sim, eu podia me encantar por alguém e esse alguém podia ser uma mulher. Eu podia desejar a minha semelhante, tanto quanto outras semelhantes minhas desejam o homem. E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam.

 

A descoberta do amor por uma mulher serviu também para que ela passasse a se entender como mulher, rompendo com o alheamento e enclausuramento em que ela própria vivia. E aqui foi onde o meu incômodo inicial se mostrou mais forte, pois, por mais que eu entendesse o sentimento de Campo Belo, me parecia problemático atrelar o seu "entender-se mulher" ao "não haver nenhum homem dentro dela". Vejam bem: não haveria problema em ela não se entender mais como homem, a questão está em sugerir que isso tenha relação com amar uma mulher. Ela poderia amar uma mulher independente do gênero com que se identificasse, entendem?

Até porque ali foi a primeira vez que apareceram juntos os elementos "possuir um menino dentro de si" e "sentir atração por mulheres". Até então, as duas coisas estavam bem separadas: na infância, ela só mencionava o fato de sentir-se menino, sem nunca fazer referência a por quem sentiria atração; na adolescência, faz uma breve menção à questão do desejo, mas, na conversa com o então namorado, já começo da vida adulta, volta a colocar-se como menino e, agora, ao descobrir o amor por uma mulher, é o primeiro momento do relato em que esses dois âmbitos se entrelaçam. Daí o meu incômodo.

Se a questão do gostar de mulheres fosse central na sua compreensão de si, é de se esperar que apareceria mais diretamente no relato, não de forma tão marginal. O que eu não estava considerando, porém, é o fator estupro. Muitos homens trans relatam terem sofrido no passado, antes de iniciarem a transição, violência sexual por parte de homens cis e daí sentirem conflitos em relação a assumirem uma identidade masculina: como reivindicar a mesma identidade da pessoa que te agrediu? O poema "Construção", do homen trans Teodoro Albuquerque, oferece uma ótima reflexão nesse sentido.

Seria esse o motivo de, somente agora, a protagonista passar a sentir-se à vontade no gênero que lhe atribuíram ao nascer? É possível que sim, mas não é de se descartar, também, o impacto da heterocisnormatividade na percepção do nosso gênero e desejo, como muito bem exemplificado pela reação do então namorado à confidência da protagonista. De qualquer forma, não parece gratuito o nome pelo qual ela prefere ser chamada: Campo Belo.

E, bom, à essa altura, espero ter deixado nítido o quanto esse conto não tem nada de simples.

AMARA MOIRA (@amoiramara no Instagram e Twitter) é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e autora dos livros "E se eu fosse puta" (hoo editora, 2016) e "Neca + 20 Poemetos Travessos" (O Sexo da Palavra, 2021). Nasceu em Campinas, mas vive atualmente em São Paulo.

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